A Família – lugar de diálogo e de comunhão

Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei,
tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
In “A invenção do dia claro”, José Almada Negreiros.

Celebramos, neste mês de maio, o Dia Internacional da Família. Foi em 1994 que as Nações Unidas apelaram à sua comemoração e o Papa S. João Paulo II quis que a Igreja se juntasse a essa efeméride, o que culminou com o I Encontro Mundial das Famílias, realizado em Roma, em outubro desse ano.

A minissérie britânica “Adolescência”, criada por Jack Thorne e Stephen Graham, tem promovido ampla reflexão acerca da família e dos complexos desafios que têm de enfrentar todos os pais e educadores em geral, hodiernamente.

A realidade apresentada assemelha-se a um poliedro que requer atenção e sensibilidade no que à educação diz respeito. A ausência de consciência do mal e das suas consequências, por parte do protagonista, um adolescente de 13 anos, é um dos tópicos explorados e põe o espectador diante de uma resposta (“Não fiz nada de mal.”) que se ouve recorrentemente, quando se lida com miúdos desta faixa etária. O que talvez impressione mais é o facto de o menino mentir ao seu pai, mesmo quando se encontram apenas os dois, num local isolado, onde deveria ter havido lugar para a verdade e para a transparência total.

Outro aspeto que convoca a atenção do espectador é a falta de respeito, seja pelos pares, seja pelos educadores. Não raras vezes os adultos ficam a falar sozinhos, pois os adolescentes interrompem o diálogo que os adultos tentam estabelecer e viram costas, numa atitude de desprezo e desconsideração pela pessoa e pelo assunto que estava a ser abordado.

O espaço doméstico é pouco explorado, na série, mas à escola é dada mais ênfase. Esta não é apresentada como um local aprazível, de convívio, de comunicação e de brincadeiras sãs. Os jogos lúdicos não estão a ser usados, no recreio, e os professores “aguentam” os alunos, apresentados por um dos docentes como “miúdos insuportáveis”. Estes agridem física e verbalmente os colegas, mesmo na presença de adultos, e não revelam vontade nem gosto em aprender.

Concomitantemente, os educadores também se mostram impotentes face ao desinteresse dos jovens alunos. Igualmente destacada é a função da escola enquanto espaço (pouco) propício à aprendizagem, quando o inspetor, depois de circular pela escola, questiona _se alguém estará a aprender alguma coisa.

O que me impressiona mais nesta minissérie e por isso a associo à comemoração do Dia Internacional da Família é a ausência de uma voz amiga e de um diálogo frutuoso entre as personagens, entre pais e filhos, entre irmãos, entre amigos ou entre docentes. Não se ouve uma conversa calorosa, uma aula apaixonante, um professor a vibrar com os conteúdos programáticos que está a abordar ou um aluno a colocar questões que fazem pensar e que desinstalam.

Entre Pais e filhos, a situação é idêntica. Todos os progenitores reconhecem que podem fazer mais, que estão pouco tempo com os filhos, que é necessário conviver mais em família e dar tempo a quem e ao que realmente importa, pois só assim se poderá colmatar a falta de diálogo e de tempo(s) bem partilhado(s).

Nos quatro episódios, é evidente a referência a vários contextos de solidão e de isolamento, em que as personagens parecem viver em ilhas, numa ausência de laços afetivos e de vasos comunicantes que os salvariam, se existissem.

Outro aspeto que me chamou a atenção foi o facto de os avós não terem ligação aos netos e estes cresceram sem essas raízes. A família da mãe não tem contacto com aqueles adolescentes e a do Pai mantém uma ténue ligação com pouca repercussão nos familiares.

Creio que este factor é muito empobrecedor e que todas as famílias deveriam investir no diálogo intergeracional na educação dos filhos, pois a ternura, o amor, a experiência de vida e as histórias familiares que só os avós sabem contar podem e devem passar de geração em geração.

Adolescência

“O que me impressiona mais nesta minissérie e por isso a associo à comemoração do Dia Internacional da Família é a ausência de uma voz amiga e de um diálogo frutuoso entre as personagens, entre pais e filhos, entre irmãos, entre amigos ou entre docentes.”  Foto retirada do trailer oficial da série “Adolescência”

É precisamente esta ausência de histórias, de laços, de relações genuínas que é necessário combater, visto que na escola, como em casa ou noutros contextos sociais, há poucas conversas entre adolescentes, entre professores, entre pais e este mutismo, tão característico da sociedade contemporânea, é na minha ótica o cerne da questão. Pode-se estabelecer um paralelismo entre a morte da jovem e a morte/decadência a que as diferentes estruturas sociais estão votadas (família, escola, igreja, grupos socioculturais e desportivos, entre outros), quando não desempenham as suas funções – acolher, escutar, aceitar, valorizar e promover a aprendizagem e o desenvolvimento de múltiplas competências. Lendo os sinais dos tempos, o Papa Francisco apresentou ideias concretas para se combater esse problema. Veja-se, a título exemplificativo, a proposta feita pelo Santo Padre, aquando da apresentação do Pacto Educativo Global, em que apela a uma formação integral e integrada das crianças e dos jovens.

É importante salientar que todas as personagens, embora sejam apresentadas como inteligentes, resilientes e bem-sucedidas, na série, manifestam um profundo desejo de serem amadas e consideradas e é o facto de isso não acontecer que está na base, na minha perspetiva, do vazio existencial que as atravessa. Desde a sua meninice, o pai não aceita as idiossincrasias do filho. Dotado para o desenho, é desafiado pelo pai a jogar futebol (tendência muito vulgar nesta faixa etária) e depois a praticar boxe, quando o progenitor sabe que o filho não tem propensão para o desporto. A jovem amiga da vítima mortal lamenta a sua perda, confessando à professora que a jovem assassinada era a única que a compreendia, que a “aceitava como eu era.”

Creio, por conseguinte, que a melhor forma de comemorar o Dia Internacional da Família passará por criar momentos de união, de partilha e de diálogo, onde os filhos possam transmitir aos pais as suas vitórias, as suas dificuldades, as suas lutas e desafios, certos de que, quando uma criança/adolescente/jovem se sente amado, escutado, respeitado e considerado, cria laços afetivos que lhe permitem voar, questionar, aprender, respeitar e acolher as suas fragilidades e as dos outros.

É importante referir que a criança/jovem pode crescer num ambiente marcado pelas dificuldades (por exemplo pela escassez de tempo ou de recursos económicos dos pais), porém aquilo que vai ter mais impacto em si é a relação afetiva que se estabelece entre a criança/adolescente/jovem e aqueles que o rodeiam.

Saibamos, por conseguinte, criar espaços-tempo de diálogo construtivo e animado(r) entre filhos e pais, entre primos, entre tios e sobrinhos, bem como oportunidades de escuta e de partilha entre netos e avós, nos espaços por onde ziguezagueamos, cônscios de que neles podemos tecer confiança, esperança e aceitação de talentos e de fragilidades.