Em matéria de teologia, tendo a sentir-me mais próxima do meu neto X, 6 anos, do que da minha neta F, de 4. Ambos vivem com os pais e uma irmã mais nova em Londres.

Conto dois episódios, para perceberem onde quero chegar. Um dia, à hora de deitar, o X contou à mãe que estava “desapontado” com o seu dia. Porquê? Porque não encontrara o cromo do Viktor Gyokeres, jogador do Sporting, um dos seus ídolos do futebol; procurou por todo o lado, desaparecera. Até pedira “a Jesus” para o cromo aparecer, mas não resultou. A mãe lembrou-lhe que talvez Jesus andasse ocupado com outras coisas mais importantes, com meninos que nem sequer tinham casa para viver ou comida para comer. O X deteve-se, pensou e insistiu: “Mas eu pedi e Ele não me respondeu”. Pois é. Aí está um desconforto que a avó Ana partilha com ele: é difícil falar com Jesus, porque do lado de lá parece não termos retorno, palavra, reação. Como se nos sentíssemos aprisionados num monólogo, em circuito fechado: de nós para Ele, mas… e de Ele para nós? Já aqui volto.

Pelo contrário, a F é mais terra a terra, sensorial e prática. Ao ajudá-la a vestir-se para a escola numa manhã, a mãe comentou divertida que sentia muito bem o seu coração a bater. Ao que a F respondeu, sem hesitar: “it’s Jesus knocking”. Aí temos um Jesus que vem de dentro, a circular no sangue e a dar fisicamente sinal de vida. O Jesus no nosso corpo, na materialidade do dia a dia.

“E tu, falas com Jesus?” – disparou, por fim, o X, para rematar aquela conversa com a mãe.

Esta é uma das grandes questões e desafios da fé sentida, praticada. É que se, para muitos, o diálogo com Jesus parece ser natural, fluido, enriquecedor e profundo – como se a fé fosse um “dom” natural – para mim (e se calhar muitos outros?) está longe de o ser. A minha fé foi e é construída, está longe de ser dada e traduz-se numa procura, num caminho difícil (sobretudo intelectual e espiritual) cheio de perguntas, obstáculos e tropeções.

Mas pensando na pergunta do X, e para lhe responder: falo com Jesus, sim. E dou exemplos, deixando o mais importante para o fim.

Falo através da oração. Aquele balanço desajeitado entre, por um lado, o dar graças por tudo o que de maravilhoso tenho recebido da vida, das pessoas luminosas de quem gosto e, por outro, os pedidos de vária ordem – de perdão, de ajuda para mim e para os outros.

Falo através de objetos. Quando agarro e rezo num terço especial que o Papa Francisco benzeu e entregou ao coordenador da Comissão Independente quando esteve em Agosto em Lisboa na Jornada Mundial da Juventude e que me veio generosamente parar às mãos. Ou quando contemplo e acendo, em horas de aflição, a luz da “santinha” (como chamamos a uma linda escultura da Virgem com o Menino ao colo) de um oratório que herdei da minha avó Gena.

Sinto que falo com Jesus quando os meus mortos me vêm visitar ao longo do dia ou da noite. E quando lhes pergunto: onde estão agora, fora de mim e do mundo? Porque cá dentro sei do seu lugar, da sua presença, dos seus silêncios que confortam.

Mas também ao distribuir a comunhão aos fiéis na Igreja. O Corpo de Cristo nas mãos – tão diferentes, de tantas vidas – daqueles que se aproximam do altar para comungar.

Mas falo, sobretudo, ao ler os Evangelhos, ao ouvir as homilias de sacerdotes (alguns sacerdotes). A narrativa das palavras tem um poderoso efeito sobre mim. As palavras constroem a realidade e, neste caso, são uma dimensão fundadora da minha espiritualidade. Sei que para um cristão as palavras não chegam, porque é na relação prática de relação com os outros que afinal tudo se joga. Mas, afinal, “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”.

As palavras dos Evangelhos levam-me àquele tempo milenar, àquelas paisagens amarelas, secas, pontuadas de oliveiras, figueiras, vinhas e colinas, ou batizadas de mar e água; levam-me àquele Homem e aos seus companheiros e companheiras, sedentos de espalhar a boa nova; às suas sandálias e aos seus caminhos determinados e irreverentes de esperança; às parábolas sempre repetidas e maravilhosas por serem simples, profundas e atuais – uma música que embala, uma mensagem que se transmite, uma segurança que nos amarra a uma comunidade que nos antecede e a que hoje pertencemos.

Está lá tudo, na beleza e conteúdo das palavras dos Evangelhos. No entanto, às vezes penso que a Igreja não se inspira verdadeiramente neles. Por um lado, porque o seu discurso está demasiadas vezes focado em temas ao lado ou até totalmente ausentes desses Evangelhos – sou só eu que sinto assim? Por outro lado, (e por certo há sempre exceções ao que escrevo, mas elas confirmam, a meu ver, a regra), a Igreja continua sem abrir com alegria, a todos, o desafio de ler e interpretar os Evangelhos. Em momentos e espaços coletivos, onde nos ouçamos uns aos outros, na nossa diferença de pontos de vista. Na missa, por exemplo, onde a homilia é privilégio do sacerdote que a celebra. E se um leigo, uma leiga, um grupo, viessem igualmente trazer o seu contributo, de viva-voz, sobre os textos lidos? Nos mostrassem, eles também, outros modos de falar com Jesus? Sendo jovem, ainda antes do 25 de abril, lembro-me de uma missa na Capela do Rato, em Lisboa (do Padre Alberto Neto?) em que, no momento da Oração Universal, qualquer pessoa se podia dirigir ao altar e lembrar uma causa, uma situação que a preocupasse. Nunca mais vivi essa experiência inspiradora: tudo, do princípio ao fim da missa, é controlado e monopolizado pelo sacerdote.

Muitas vezes imagino rituais onde, deixando intactas formas e fórmulas milenares, se abrissem alas a uma vivência mais plural, participada e ativa de todos nós, esse povo anónimo de Deus. Em que todos tomássemos e interpretássemos a Palavra e por essa via não nos sentíssemos tão sós na procura de resposta à pergunta-chave do X: “e tu, falas com Jesus?”.

Ana Nunes de Almeida é socióloga, ex-membro da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal.

Fonte: 7margens

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